Qualquer um de nós, em alguma fase da sua vida, já experimentou um desporto de bola praticado em equipa. Sabemos que em desportos desse género, ainda que o virtuosismo individual possa fazer a diferença, o êxito reside muito no trabalho colectivo e no entendimento entre os elementos que têm um objectivo comum: marcar pontos. E no que respeita às qualidades de um determinado executante, entre as mais apreciadas costumam estar o sentido de posicionamento (para poder receber os passes dos outros) e o de jogar com a cabeça levantada, dominando a bola (quase por instinto) mas estando atento ao que se passa com os companheiros, mantendo uma constante “leitura de jogo”. E passando a bola quando outros estão em melhor posição.

Esta analogia desportiva serve apenas para ilustrar aquilo que às vezes é (ou não é) a nossa relação com outros agentes com quem temos obrigação de interagir quando se trata de cumprir a nossa missão: contribuir para a educação das crianças e dos jovens. E reforço a palavra “contribuir” porque esta é uma tarefa partilhada; com a família, com a Escola, com a Sociedade em geral.

Que me perdoem o desabafo mas às vezes somos mais parecidos com aquele jogador que se tem em grande conta, que não consegue jogar sem fitar continuamente a bola, aquele que faz “caixinha”, pegando na bola, percorrendo o campo em toda a extensão, fintando tudo e todos (às vezes até a ele...) por vezes esquecendo-se mesmo onde está a baliza e qual é o seu objectivo.

Sobre o génio do Método Educativo que usamos e sobre o impacto positivo fabuloso que pode causar nos jovens (quando bem aplicado) estamos conversados. Nós, escuteiros, estamos bem cientes dele; os pais, na generalidade, também têm uma impressão positiva; quando estendemos à restante sociedade a coisa já começa a piorar.

Termos um método genial é bom, é um fantástico ponto de partida, mas não chega. O mundo mudou radicalmente nos últimos 100 anos e estou certo que o nosso fundador ficaria muito zangado connosco se não soubéssemos estar “à frente do tempo”, tal como ele o fez, ao inventar um movimento (não uma organização!) em que os rapazes eram os principais motores e protagonistas. E não esqueçamos que BP o fez após ter “lido” a situação na sociedade à sua volta e chegado à conclusão que era preciso fazer alguma coisa para fazer frente a um contexto social em que muitos jovens levavam uma vida de ociosidade e abandono.

BP “leu” a sociedade e procurou dar uma resposta (adequada ao seu tempo mas ainda assim ousada). E o que fazemos nós agora? Será que tentamos “ler” aquilo que nos vai à volta e procuramos dar resposta na perspectiva de “contribuir para um mundo melhor” (pois não é disto que se trata desde o início?)? Ou limitamo-nos a estar entretidos a fazer aquilo que costumamos fazer (nem sempre o correcto) bloqueados pelo hábito, pela tradição e pelo receio de que o contacto com outros possa “desvirtuar” a nossa acção? Permitam-me que vos diga que só quem não está seguro do valor daquilo que possui tem medo de o abrir aos outros.

A tarefa de ajudar jovens a crescer é demasiado séria e nobre para que não a tratemos com a atenção devida. E para que não entendamos que tem de ser feita em parceria com outros, alguns mais “institucionais”: a família, a escola, o clube desportivo, a associação cultural... Na maior parte dos casos, cada uma destas partes (à excepção talvez da família) preocupa-se com o desenvolvimento de cada jovem mas numa perspectiva muitas vezes mais “sectorial” (o raciocínio, o físico, a sensibilidade...)

No Escutismo, claro, o nosso objectivo não podia ser menos ambicioso do que tentar garantir que esse desenvolvimento se dá em todas as áreas: físico, intelectual, espiritual, emocional, carácter, social. E como sabemos, o Sistema de Progresso não é mais do que uma maneira de medir precisamente os avanços (os progressos...) que cada um vai fazendo nessas diversas áreas. Tal é feito pela “leitura” dos “sinais” que se vão revelando dessa progressão (o ultrapassar de objectivos, de provas).

Mas se o que nos interessa é o desenvolvimento de cada jovem, não vos parece que nos devíamos alegrar pelos (e reconhecer os) progressos que ele vai fazendo na sua vida (independentemente de terem sido conseguidos nas actividades de escuteiros ou não)? No CNE temos alguma tendência para valorizar menos os sucessos conseguidos fora das actividades (como se tudo tivesse de acontecer numa tarde de sábado por semana!..). Noutras associações escutistas (na América do Sul, por exemplo) encoraja-se um contacto estreito entre o Chefe de Grupo, a família, os professores, os treinadores...de modo a que todos os progressos registados pelo jovem nos diversos domínios da sua vida “contem” para o seu reconhecimento nos Escuteiros. Isto é, no reconhecimento do seu crescimento harmonioso, de que queremos ser “guardiões”.

Caros amigos

Deixo-vos duas ideias finais em que acredito:

O Escutismo deve reforçar o seu carácter complementar na educação dos jovens apostando naquilo que são as deficiências ou insuficiências do sistema familiar, social, escolar – falo da educação activa, da cultura dos valores, do desenvolvimento de competências a que a escola raramente dá resposta (o trabalho em equipa, a liderança, as rotinas de intervenção e participação activa...). Tudo isto num diálogo permanente com os diversos agentes.

O Escutismo só ganha quando tem a coragem de “sair do casulo” – ao estar mais atento ao que se passa à sua volta, estará mais habilitado a preparar melhor os jovens para desempenharem na Sociedade o papel activo que faça a diferença; por outro lado, mais facilmente gera parcerias que lhe podem ser úteis na sua acção e prepara terreno para “maximizar” o seu impacto social.

É pois este desafio final que vos deixo: “tiremos os olhos da bola”. Saibamos olhar à nossa volta, reconhecer as ameaças e oportunidades e, mantendo a fidelidade a um método genial, adaptar a nossa acção aos tempos que vivemos e aos outros que temos a obrigação de adivinhar e construir. E só com os Jovens o poderemos fazer.


João Armando Gonçalves

Dirigente do CNE

(texto proferido no fórum "Escutismo... uma opção!", organizado pela Região de Santarém, no dia 27 de Fevereiro de 2005, em Alcanena)

1 comments:

At quinta-feira, 15 fevereiro, 2007 CastorPioneiro said...

Quem vê um jogo da selecção ou um qualquer outro das competições europeias, rapidamente percebe que os portugueses têm uma peculiar apetência para não tirar os olhos da bola... Assim, mais faz sentido esta chamada de atenção no contexto nacional e o que em linguagem escutista se poderia designar de Visão estratégica, temática agora mais reflectida no âmbito do PEP (Plano Estratégico Participativo).

 

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